Conto – O Joalheiro
Em um lugarejo, de há abastadas eras, vivia um velho joalheiro, que trazia nas mãos o feitio da arte de criar peças reluzentes e bem talhadas, para enfeitar o corpo e a mente. As obras eram moldadas em forja simples e pacóvia, pelo conhecimento herdado do pai, também ourives, no ofício de tradição familiar.
A oficina tosca, que se geminava na própria morada, não espelhava a genialidade e nobreza das obras, que escapavam do lugar para as mãos, braços, cabeças, pescoços e colo da opulência, ávida em se mostrar.
Já com as contas adiantadas no rosário da vida, a idade lhe assomava nas faces sulcadas e murchas, no corpo curvado, nas mãos de peles mambembes e no caminhar lento e preguiçoso – feitura de um retrato desgastado pelo tempo.
Sabino, vivia em uma cidade do interior, daquelas, fruto do labor do campo, com muitos fazendeiros de posse. Um comércio de consumo abrangente, no principal, lojas de miudezas à costumes domésticos, além de escritórios, pequena casa bancária, pensões e fugais hotéis, botecos, dentre outros ganha-pães, sem aparatos. Uma provinciana cidade, miúda, de parcos vinte e poucos mil habituais residentes.
Corria os anos cinquenta, do século derradeiro, quando o joalheiro, viúvo e sem filhos, não alimentava muita paixão pela vida, sem um herdeiro na profissão. Seus irmãos buscaram outros afazeres e a maioria já havia trilhado o caminho de encontro à espiritualidade, ao se apartar daquele mundo. Restava-lhe dois manos, já erados, e alguns sobrinhos.
De vez que, o resultado de seu intento de profissão era de necessidade terceira, no contumaz consumo de vida, Sabino realizava poucos negócios e quase somente para gente de posse. Desta maneira, foi a duras penas, durante longos anos que o joalheiro conseguiu uma modesta casa própria, um automóvel usado e uma pequena poupança na casa bancária.
Naquela comunidade, vivia um abastado senhor, com mediana idade, casado com donzela de linhagem reconhecida, locador de várias propriedades, que lhe reservavam polpuda renda. Doutor Leôncio, além de uma locadora de imóveis próprios, ainda emprestava dinheiro a juros usurários, se aproveitando do revés de outrem. Até mesmo Sabino, o agiota já lhe emprestara negócio.
Numa tarde de desalento, Sabino, desesperançado, recebeu a visita de doutor Leôncio, na busca de seus serviçais dotes artísticos. Avizinhava o aniversário da esposa e o opulento senhor, para demonstrar o seu amor à patroa, almejava uma joia inigualável. Seria um presente inesquecível! Um colar de esmeraldas, engastado de brilhantes, em ouro branco de pesado quilate. Joia de valor inestimável!
Sabino, lhe prometeu, naquela semana, lhe apresentar o desenho da peça, os custos materiais e da mão de obra.
Era uma época de poucos negócios e o artesão estava assaz necessitado de um trabalho, que pudesse lhe dar segurança num futuro, ora incerto. Aquele trabalho seria a sua grande promessa de vida. Até que enfim! Por consequente, naquela semana, o joalheiro foi desfiando o novelo das coisas. Das coisas da vida. Sua vida. Sonhava, enquanto criava e assentava no papel custos, despesas e a motivadora mão de obra. Havia de realizar o negócio! Vida nova, alma nova! Esperança!
No decorrer de uma semana, recebeu nova visita do comprador, que no após longa conversa acertaram o negócio.
O joalheiro, por falta de um capital de giro, sempre buscava dos clientes um adiantamento, para compra do material necessário; este se fazia ainda mais premente.
Entretanto, o avaro Leôncio, na incerteza do objeto não sair à altura do esperado, receoso que o joalheiro não fosse capaz de uma entrega de tamanha envergadura, negou-lhe o primeiro pagamento, antecipado.
Com a cautela dos desacautelados, imprevidente, Sabino cedeu-se a demanda do comprador e descartou o costumeiro primeiro pagamento, adiantado, em principal, pelos caríssimos materiais que a joia lhe exigia, em mãos. A necessidade cega o precavido!
Doutor Leôncio era homem de renome e já lhe facultara, algumas vezes, empréstimos nas emergências, profissional e doméstica; no entanto, sempre documentado. Não haveria dúvida, quanto ao remate do negócio, em um tempo em que o cabelo do bigode era um documento de honra.
Pelo respeito e confiança, Sabino não se garantiu nem com um documento escrito, nem com uma prova de solicitação de trabalho, devido à carência e precisão de momento.
Para fazer jus ao capital necessário, o ansioso joalheiro, ávido por um futuro melhor, acreditando na esperança, vendeu o carro e hipotecou a casa. Assim foi feito; assim aconteceu.
Durante mês e tanto o pobre velho trabalhou com afinco e dedicação, até altas horas, para tornar efeito a promessa da joia e realizar o sonho – reaver a casa, comprar um carro novo e ainda uma polpuda poupança, para a dignidade do final de vida.
Como um costume de há anos a fio, o velho, enquanto trabalhava, buscava ouvir no rádio, a única emissora da cidade, quando podia se entregar à música e, ainda, buscar conhecimento às notícias corriqueiras do lugar.
Enquanto polia a joia preciosa, razão de uma vida melhor, finalizada, reluzente, deslumbrante e ostentosa, ouviu uma notícia de última hora:
– E, agora uma notícia que abalou a sociedade de Estrela Brilhante. Dona Isabella, esposa do destacado cidadão Doutor Leôncio Brilhante Alvares, faleceu, vítima de um acidente na rodovia, que liga nossa cidade à capital. Com ela, estava o filho Gabriel e a nora Manoela, que, felizmente, se salvaram.
As suas mãos se calaram, os gestos emudeceram! Apesar de silencioso, uma voz advinda do coração, apesar de entristecida pelo infausto, prenunciava um tempo nebuloso e sombrio.
Como bom cidadão, foi ao sepultamento, cumprimentou a família e retornou ao seu canto, ora obscuro e sem promessa.
Dias passaram e no após muito cismar e confabular com os seus preceitos, armou-se de coragem e foi ter-se com Doutor Leôncio. Afinal, não fora ele o causador daquele infortúnio; havia um acordo entre eles e o doutor poderia dar a joia à nora. Sabino não poderia arcar com tamanho prejuízo, já que sua vida estava a mercê daquele negócio. Estava nas mãos de Leôncio. Sabino sentia-se rico, agora poderia ter mais posse, mas, de momento, não tinha mais nada!
Com o chapeuzinho na mão, bateu à porta do doutor, que após anunciado pelo mordomo, o recebeu no escritório da mansão, detrás de uma grande mesa de jacarandá.
Após os cumprimentos, novamente manifestou o pesar pelo falecimento de Dona Isabella. Sabino havia ensaiado e tecido uma renda de justificativas, de que apesar do funesto acontecimento, ele não poderia arcar com os prejuízos. A joia, inclusive, era um investimento. Entretanto, calou-se como se um nó na garganta lhe entravasse a voz. Sem nada mais a dizer, no após, lhe entregou o colar, dentro de um estojo de veludo.
Sem ainda lhe manifestar palavra, Leôncio abriu o estojo, posou-lhe os olhos, desnudou-o; retornou a Sabino, fechou o objeto e disse-lhe:
– Ficou muito bonito, mas, agora, não faz mais sentido…
Girou a cabeça, com olhar, ganhou a porta do escritório e, em voz alta, chamou o mordomo:
– Leonel, o senhor Sabino está de saída!
Palavra de tratante é um risco n’água!