O ano era aquele, que o tempo o removeu ao passado, distante, longínquo, de perder de vistas. Horas que se vão, sem ao menos nos avisar, para maior proveito do momento, ainda mais, com prazer, com alegria; aquele êxtase de instantes, que nos engole, deixando-nos à mercê de um aperto, calor amigo, no peito, que envolve o coração. Eras passadas que se vão e de resto uma saudade, que não se aparta, afoga com melancolia, doída pelo tempo feliz, deixado num canto, do baú da vida.
1955, 56, 57 e tantos! Na Rua Capitão Izidro, em Araxá – terra bendita que me viu crescer com muitos irmãos, sete, a bem da verdade; irmanados no amor, que o calor paterno emanava, sem reserva, cobrindo-nos com o manto do amor. O pai conselheiro, como se em um confessionário estivesse, a nos ouvir e nos prover de ensinamentos, filosofias, para um bom viver, sem traumas, sem atropelos, como um guia de cego, a nos abrir os olhos, para uma existência feliz! A mãe bondosa, com os braços envoltos em nossos corpinhos infantis, sempre com um quitute à mão, que aguava a boca e não saciava a vontade do “quero mais”. E os filhos, felizes, companheiros, irmanados como as contas de um terço, que os dedos debulham, em oração.
A história da família – recontada inúmeras vezes, como exemplo de vida, para proveito da prole, sobre a orgulhosa árvore genealógica, que nunca se curvou os galhos ao pecado, ao vício, à desonra e à desonestidade! Suas ramas folheadas de virtudes, como a honestidade, o trabalho, a cidadania, a amizade, a fraternidade, foram sempre adubadas com amor. Afora das paredes da casa sempre se ouvia, com denoto ímpar, “se és um filho do seu França, as portas estão abertas para você” – como diz o saber: “a palavra convence, mas o exemplo arrasta”!
Neste ambiente acolhedor de tanto amor, inebriante de lembranças inesquecíveis, que conheci meu tio – meu tio Alcides Ferreira da Silva, irmão de mamãe e cunhado de papai, que o meu velho o acolhia com fraternidade. Tio Alcides nasceu em uma família de muitos filhos, órfãos de pai e mãe desde a infância, criados separados – que contarei em outro escrever – sem nunca terem perdido o liame da cepa, donde nasceram. Após adultos, sempre que lhes ensejassem, buscavam o reencontro, para amainar a saudade – suas histórias de vidas são permeadas de fantasias e casos curiosos, que despertam a narrativa interessante.
Meu tio era sósia de Adoniran Barbosa, moreno, alto, magro, nariz proeminente, de voz grossa e envolvente. Tio Alcides residia na vizinha cidade de Sacramento, antigo Desemboque, e sempre que havia ocasião, tomava estrada para Araxá, para se aprouver do encontro com a família da mana. E, meu tio era hilário! Pessoa incomum, contador de casos, declamador de poemas, repentista, proseador incontido, capaz de dominar uma plateia contemplativa, por horas a fio, sem perder o fio da meada, que ele preponderava com maestria, como as rédeas de um animal domado. Recordo-me do “ABC do Casamento”, que nunca me fugiu à memória, um poema divertido e atrevido, ao satirizar a vida de casado. Toda a família se reunia ao seu entorno, quando ele dava asas à imaginação e a memória prodigiosa, a contar histórias, piadas, casos e declamações, num show onde o gracejo não encontrava limites. O riso incontido de sua plateia chegava à gargalhada de banhar o rosto de lágrimas efusivas. Assim, era tio Alcides, parente querido, inesquecível e talentoso.
De certa feita, após um caso sobre a doma de gado, de animais, em ambiente rural, fiquei deslumbrado com a história de um laçador de marruás, que me acendeu a vontade de estar em seu lugar, pela sua coragem, força, habilidade e determinação – coisa de criança. Após a minha confidência, ao contador da história, meu tio não se fez de rogado, prometeu-me, na sua próxima estada conosco, um laço de doze braças, feito couro cru, trançado com 8 tentos, com argola de ferro e peia para fixação na chincha, na época, para mim, um presente inesquecível. Fiquei maravilhado, orgulhoso e até causei inveja a alguns amigos e colegas de escola, quando lhes contei, daquele presente prometido, que aguardava com ânsia e paixão.
Refém do relógio, o tempo passava e toda vez que meu tio retornava e lhe cobrava o presente, ele resoluto, criativo e sem se surpreender, com justificativas convincentes, inventava nova história sobre da impossibilidade de tê-lo, naquela viagem, porém, na próxima, não haveria erro. Cabisbaixo, mas com aguçada esperança, voltava à estaca zero, no aguardo do presente prometido, após a partida do tio Alcides. A vida, às vezes, dá sem entrega, pois afinal o importante é o que fica em nossa história, de encontro com a lembrança!
Este era meu tio Alcides, inesquecível, talentoso, inteligente, espirituoso, habilidoso, astuto, sensível e amigo! Sua vida dá um livro repleto de histórias interessantes, de ser ler, sem pausas, bem temperadas, como uma boia boa, regada à cebola, alho e pimenta malagueta, em fogão à lenha, fumegante de dar fuligem nas telhas da cozinha!
A bem da verdade, até hoje estou à espera daquele “laço de saudade”!
*Inspirado em meu filho Vinícius, de vida sem amarras, que quando vem à Araxá, deixa os sobrinhos e amigos maravilhados, com seu cão Floyd, bem adestrados, pelo próprio.