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Crônica – A Roça

Crônica a roça - Foto Pôr do Sol na estrada da Serrinha no Barreiro - Fábio Rage

Crônica – A Roça

Eu me lembro, como se hoje fosse, meu pai de roupa surrada – roupa de mato –  me tomar pela mão e levando-me até à roça. A roça eram duas propriedades rurais, às margens do Córrego do Sal, de meus tios Ilson e Artur Ribeiro, casados com as irmãs de papai, Dindinha e Tia Cela. Quase toda sexta-feira, à tardinha, de capanga, canivete e botina mateira, a gente fazia aquele mesmo ritual.

No caminho, descíamos o Chorão, passávamos pela Chácara do Urciano José Ribeiro, depois em um pasto com um gado bravo, escondido numa capoeira – dava-me a impressão que estavam dissimulados, aguardando, para assustar a gente. Aquele pau d’óleo, árvore soberba de copas espraiadas, esbanjando sombras no chão, não me foge nunca do pensamento! É, fechar os olhos e ela me vem solitária e altaneira, orgulhosa, para deixar todas as demais da capoeira, lânguidas de inveja! Depois da porteira, entre dois mourões de aroeira, se descortinava uma estrada boiadeira, corredor entre cercas farpadas, empoeirada e manchada de estrume de gado. Logo após, advinha aquela descida íngreme, rumo ao Córrego do Sal. Pé ante pé, como um acrobata no arame, com o apoio do corrimão, um balaústre de bambu parrudo, vencíamos a pinguela de tronco de árvore deitado e passávamos para outra margem. Quantas vezes, com meu irmão Francelino, pesquei naquelas águas cristalinas, morada de bagre e timburé! Nossa empreitada, era, exatas nove léguas, até a fazendinha da Dindinha. Eu, menino franzino, de calças curtas, acompanhando ligeiro, as passadas largas de meu pai, altivo de chapéu de couro de lebre, marrom. Aos finais de ano, este caminho fora, às vezes, deixado, para embrenharmos no campo, com o propósito de catar gabirobas ou cajuzinhos, estes, encomendados pela minha mãe, para se encaldarem numa compota doce, como um néctar do Olimpo!

Crônica a roça - Serra - Fábio Rage
Crônica – A Roça – Foto – Fábio Rage

Finalmente, a gente rompia um colchete e descia num caminho cascalhado até a casa, sem antes passar debaixo de uma frondosa gameleira, que quase encobria a morada de minha tia. Eu me juntava aos primos e era uma festa só! O quintal estava sempre soberbo de frutas, cheirosas que nem cajá-manga, doces tal qual manga sabina e saborosas como laranja campista.

Do outro lado de um ribeirão, após uma pinguela, era a outra fazendinha, da tia Cela. Naquele correr d’aguas, os mais velhos contavam que tinha até sucuri, comedora de gente. Os meninos equilibravam sobre o tronco, de olhos arregalados e precavidos, olhando para os lados, “tremendo que nem vara verde”! Ao lado da casa, salientava-se outra árvore belíssima, um pau d’óleo comprido e elegante de copas altas e arredondadas.

O dia era andar na égua baia do tio Artur, perambular pelos quintais, matar passarinho, pescar ou nadar no Córrego do Sal e fazer traquinagem de menino peralta.

Meu pai, de enxadão em punho, rumava para o pomar na busca de formigueiro de saúva. Durante horas, meu velho removia terras do quintal, até chegar ao cerne do formigueiro – residência real e berçário das formigas; sítio que ele denominava “panela” – uma pasta cinza, repleta de ninfas e a rainha. Com vários baldes de água, papai destruía o formigueiro, que recebia também o suor de seu corpo, como em prantos salgados, que os poros despejam, pela peleja do corpo.

A noite era um calvário! Reunidos na cozinha da Dindinha, à luz de lamparinas, sentados na escada que vinha da sala, ou espalhados pelo chão, a gente rezava um terço comprido, puxado pela tia e acompanhado de uma interminável ladainha de “Ave Marias” para os fulanos, sicranos e beltranos, vivos ou já passados para outro mundo, que ansiavam por oração. Era uma angústia que, nós crianças, tínhamos que responder como autômatos: “Santa Maria mãe de Deus…, o pão nosso de cada dia…”. Quando a reza terminava era um alívio e vinha o melhor da noite. Ao redor de meu avô Nhozinho, a molecada ouvia do velho, as mais macabras histórias de assombração, de porteiras que se abriam sozinhas, de barulho de arrastar couro, de negro escravo que morreu e voltou pra se vingar dos senhorios, do homem que virou lobisomem na lua cheia, enfim, casos de fazer gelar a espinha e deixar a gente arrepiado de medo!

Crônica a roça - Panorãmica- Fábio Rage
Crônica – A Roça – Foto – Fábio Rage

Já combalidos pelas peraltices do dia, da ladainha da Dindinha e das histórias de meu avô, íamos deitar naquele colchão alto, recheados de palhas de milho, onde a gente se afundava e dormia uma noite prazerosa! Lá fora, o som do coaxar de sapos, do berro tristonho de um bezerro novo, apartado, e dos grilos tagarelas, embalavam nosso sono, nos “braços de Morfeu”. Em cima de uma cômoda, um vidro repleto de pirilampos, vagalumes – colhidos na noite, antes da reza – clareava o canto do quarto, com uma iluminação tosta e intermitente.

De manhã, despertávamos com um cheiro adocicado de quitanda no forno de fogão à lenha, fumegante. Providos com copo de folha, forrado com um pouquinho de raspa de rapadura no fundo, a gente subia na cerca do curral, com a boca aguada, à espera da ordenha das vacas, com bezerros mais velhos – leite gordo e mais consistente. Assim, aguardávamos as mãos calejadas de Tio Artur ou Tio Ilson pegar o copo, para enchê-lo de leite espumante, morno e branquinho.

No domingo, pela manhã, papai subia nas laranjeiras, se esquivando dos espinhos, munido de um saco de algodão, para colher as maiores campistas, as grimpeiras, e levá-las para casa.

À tarde, nós fazíamos o caminho de volta, numa toada mais amena, motivados pelo cansaço das traquinagens dos dias anteriores e pela carga do saco com cinquenta laranjas, escolhidas, nos ombros de papai.

Na segunda-feira, era dia de aula no Delfim Moreira, com a enérgica Dona Lolita Afonso. E, eu quase sempre não tivera tempo de fazer os deveres de casa. Sonolento, à noite, daquele domingo, minha mãe sentava-me na mesa da copa e supervisionado pela Marise, minha irmã, fazia os benditos “Para Casa”!

É um pedaço de minha vida – dos meus idos – que se foi, mas que insiste em não sair da memória! De tudo o que se passa, fica um pouco. É a lembrança cheia de saudade, como a comichão gostosa, que incomoda, advinda do bicho-de-pé, que a gente sente, sem ver. Tempo de criança peralta, que fica adormecido que nem urso, hibernado na minha cabeça, quiçá no meu coração! Enfim, feliz daquele que tem uma história para contar!

Fotos de Fábio Rage – Araxá – Região onde se situa o Córrego do Sal

Crônica – A Roça – Leia outras crônicas no blog – Crônicas

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