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Mano França

Meados da década de 50 do século passado, Tarcisio e Francelino.

Mano França.

A noite é fria e sem poesia. Chove! Lá fora, a brisa molhada e gélida teima em romper a veneziana, para desaquecer o meu quarto. Porém eu me vingo de seu hálito gelado, prenúncio de inverno. Apesar do aconchego, do calor de minha alcova, meu ser está frio, trêmulo e em desalinho, tirando-lhe o prazer de esfriar meu coração, ora, paralisado e arrefecido pela ausência.

Há algumas horas, deixadas ao sabor do desespero, na madrugada que nos antecedeu, meu mano querido, meu doce “tio Doce”, meu “Celsis”, meu “França”, meu “Gaúcho”, meu “Francelino” roubou-nos a esperança, deixando-nos à mercê da solidão, de mãos vazias! Porque você fez assim, França, se bem sabia que a sua ausência deixaria uma cadeira vazia na mesa de nossas vidas, incapaz de ser ocupada, novamente? Você não foi precavido com a gente! Você não poderia partir, assim, sem nos dar a oportunidade de um tempo para a reflexão, para acomodar a sua ausência, para entender que a vida é efêmera e passageira. Mas, eu lhe garanto, com certeza, que mesmo você nos deixando, será incapaz de fugir de nossos corações! É o legado de nossa convivência, por anos a fio!

Mano França - Irmãos Ferreira Cardoso - Tarcisio, Maria Terezinha, Marluce, Francelino, Marília, Marise, Marilene, Clotário.
Irmãos Ferreira Cardoso – Tarcisio, Maria Terezinha, Marluce, Francelino, Marília, Marise, Marilene, Clotário.

Minha família passou o dia incrédula, sem entender o que se passava, se perguntando, se lamentando, sem respostas que pudessem dar vazão ao entendimento e à compreensão. As lágrimas são incapazes de acalentar e consolar um coração desaquecido, que se julgava impávido.

Agora, depois do desabafo, ao cismar, no meu destino continuado, retomo a vida, acomodo as emoções, ao buscar nas promessas espirituais, a esperança, deixada ao desdém, pisada, enlameada, naquele caminho de angustia. Escrever, me faz bem! A cada palavra vou me ausentando da angústia, da revolta e do desespero! Paro, à luz da reflexão, volto a cabeça por sobre os ombros e consigo divisar sua lembrança, afortunada, alvissareira e plena de vida, em nossas vidas! Meu Celsis!

Mano França - Francelino rodeado pelos sobrinhos em reunião da família Ferreira Cardoso.
Francelino rodeado pelos sobrinhos em reunião da família Ferreira Cardoso.

Meus pais lhe chamavam de “filho”, vovô Tarcisio de “Gaúcho”, meus irmãos de “mano”, seus filhos de “pai”, os sobrinhos de “tio Doce”, os netos de “vovô”, os amigos de “França”, a carteira de identidade de “Francelino” e eu de “Celsis”. Veja, meu querido, o quanto você representou nos palcos da peça de nossas vidas, cujo o enredo era o amor!

Com orgulho, me aventuro demonstrá-lo, através da retina de minhas lembranças. Dou graças por tê-lo em muitas páginas do livro de minha história, escritas pelas suas mãos carinhosas!

Francelino, nome herança de meu pai, foi um homem bom! Um cidadão correto, probo, um homem honesto, um amigo solidário, um ser humilde – sem empáfia, um profissional determinado, um pai de família presente, um filho amoroso e um irmão fraterno e apaixonante! Exemplo de cidadania!

Mano França - Marcelo, Leandro e Francelino.
Marcelo, Leandro e Francelino.

Dentre suas inúmeras habilidades, a versatilidade levou-o à mecânica que exercia de maneira nata, pela experiência e observação. O prazer foi tão presente em sua vida, que além de uma oficina profissional de “magrelas”, ao se aposentar, levou sua parafernália de ferramentas para seu quintal!

Meu mano querido tinha o dom de encantar a criança! O seu mundo tinha sempre um momento pueril, como se estivesse em uma casinha de brinquedos ou em um parque de diversões, onde retomava a infância para vivenciar o mundo infantil com sobrinhos, filhos e netos! Assim, recebeu a alcunha, carinhoso, de tio Doce!

Aos animais reservava um respeito especial, como se humanos fossem. As suas plantas eram cultivadas com o adubo e afeto!

Amante da natureza, se orgulhava do passaredo em seu quintal, esvoaçante e ruidoso, cujo alarido o acordava em todas as manhãs! Todos cevados com canjiquinha e alpiste. Na sequência, natural desta paixão, gostava de uma pescaria e fez dela um objeto literário, ao descrevê-las com graça, malícia e prazer no Jornal Interação, que estimava como se dele fosse!

Mano França - Vinícius, Marcelo e Francelino na fazenda do Wander e Marise.
Vinícius, Marcelo e Francelino na fazenda do Wander e Marise.

Francelino amava, de paixão, crianças, plantas e animais!

Com ele, nove anos mais adiantado, vivi momentos hilários, em pescarias, passeios campestres, atividades físicas e um mundão de oportunidades únicas, momentos conviventes e inesquecíveis! Eu, menino, montado na garupa de sua bicicleta; ele já rapazola.

Se a vida tem uma razão, Francelino viveu-a em imprecaução, a seu modo, sem estar preso aos ditames sociais, afeitos a modismos e costumes superficiais, entretanto, sem desmerecer os ensinamentos de meu pai, sobre cidadania e valores humanos. França era um homem simples e pleno de virtudes!

Meados da década de 50 do século passado, Tarcisio e Francelino. Foto - Marise Cardoso Afonso
Meados da década de 50 do século passado, Tarcisio e Francelino. Foto – Marise Cardoso Afonso

Se existe paraíso, Celsis está sentado em uma nuvem branca, límpida, em um céu azul, na eternidade, onde a natureza existe sem manchas, sem nódoas, sem o verbo poluir, como ele bem amou nesta vida, vivida, ora, sem vida!

Crônica Mano França – Leia outras crônicas no blog – Crônicas

 

 

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