Corria a década de quarenta, do século já em cinzas, e naquele ermo, escondida por detrás de uma grota, num pé de serra, na rabeira da encosta, manchava o campo uma casinha de cinco cômodos, caiada de branco encardida, que acomodava seu Mané Mulato e a família, dona Maroca e três filhos, duas meninas Mariazinha e Dolorita e um garotinho de dez anos. A despeito de pequena e singela, era uma morada de abobe, rebocada com terra e estrume de gado, porém limpa e bem conservada.
A família vivia refém do trabalho esporádico do genitor, que sem ter um emprego fixo, buscava dentro do ofício de trabalhador rural o que ora se apresentava. O mais comum era o empreito, que variava em de acordo com a circunstância, ora bateção de pasto, capina de lavoura, campear reses perdidas, desbastar mato, limpar quintal, panha de café, colheita de milho e até tanger carro de boi, entretanto, nunca como candeeiro que era serviço de menino, quando buscava o adjutório do filho Tonico. Além destes, Mané Mulato mantinha o sitiozinho de um hectare, com duas vaquinhas curraleiras, para o desjejum da família, uma mula castanha que lhe servia de custeio, uma eguinha que de além da montaria, arrastava também a carroça, para algum serviço de precisão. A vivenda se estendia com um quintal com bica d’água pra lavação de roupa e apetrechos da cozinha, uma horta de couve, um pequeno pomar e uma rocinha de mandioca, milho , feijão e abóbora, que supriam o sustento da casa. Coisa pouca, minguada para o consumo, sem propósito de venda.
Aquele sitiozinho com serventia de morada fixa, que Mané Mulato adquiriu com o suor do corpo, com muito serviço, economia e trabalho, situava nos arredores de várias fazendas de porte médio e até grandes propriedades. Era delas que advinha o seu trabalho, que graças as suas boas qualidades e disposição, nunca faltava serviço. Não foram poucas as vezes que os fazendeiros de derredor lhe propuseram trabalho fixo, o que sempre fora recusado, de vez que Mané Mulato nunca fora de esquentar trabalho num só lugar. Apreciava mesmo era mudar de ares, ora aqui, então acolá, às vezes no cabo da enxada, então no machado, na foice ou picando boi de carro. Sensaboria de um lugar só, lhe dava ojeriza. A única serventia que lhe dava gosto de caducar num só lugar era no seu sitiozinho, ao lado de Dona Maroca e os rebentos.
Motivado pela sua constante proximidade com aqueles vizinhos, a comunidade rural da região em que sempre prestava serviços, a sua família também participava destes afazeres. Dona Maroca, via de regra, era sempre requerida, para fazer doce de tacho, serventia de doméstica, quando havia hóspedes nas fazendas, faxina e até lavação de roupa. Mas tudo, como o marido, de empreito. Regular trabalho fixo, nem pensar. Dava dinheiro mais minguado e lhe tirava do convívio com a família, e ademais dos muitos afazeres de casa.
Já as crianças se divergiam muito. As meninas sempre mais caseiras, como a mãe, no entanto, Tonico era desassossegado, ao espelho do pai. E, sempre que tinha oportunidade o acompanhava, para já ir enturmando com os afazeres de Mané Mulato. Já capinava, subia nos pés das frutas para colhê-las para os vizinhos e, ademais, ajudava muito no trabalho do pai. A recompensa advinha sempre em moedinhas, guarnecidas na algibeira da calça curta.
De certa feita, Manuel Mulato aceitou um serviço de transporte de um lote de burros de uma invernada até ao curral de uma fazenda próxima. Como de costume, Tonico foi na eguinha Pavuna e o pai na mula Caçula. Durante o percurso Tonico se encantou com um burro picaço, escuro com manchas brancas e todo calçado, também de branco. Sabia que o pai nunca teria condições financeiras, para comprá-lo, de vez que os animais seriam levados para a seleção de um comprador, de fora daquelas cercanias.
No entretanto, o moleque, se aventurou a cutucar o pai e lhe falou com aquele jeitinho de criança astuta:
– Pai, o que o senhô vai me dá de aniversário, agora, mêis que vem?
Manuel Mulato, surpreso com aquela inesperada pergunta, tão fora de hora, lhe respondeu, sem muita esperança:
– Sei não, meu fio, até lá a gente vê. Preciso ajuntar uns cobres premêro.
Pela resposta do pai, o garoto pressentiu, que daquela mina não brotava água. O pai estava sem recursos, até então. A esperança de ganhar o burro era remotíssima. Quem sabe, mês que vem. E, assim-assim tocaram em frente, sem nenhuma outra prosa.
Quando chegaram ao destino, encurralaram aquela tropa e apearam dos animais, de vez que a missão estava cumprida. O menino notou que o comprador já havia chegado à fazenda e logo, logo, começou a fazer a seleção dos animais. O garoto torcia para que o burro não fosse selecionado, porém, para sua tristeza, foi um dos primeiros.
O seu pai, por apelo do dono da fazenda, permaneceu até ao final da seleção, para ajudar na lida. E com ele Tonico ficou.
Depois de tudo consumado, depois do pai receber o pagamento e já quase na hora de deixarem o lugar, o garoto se aproximou do fazendeiro comprador do burro e lhe perguntou:
– Moço, adonte o sinhô mora?
No que o fazendeiro lhe respondeu, decorrente:
– Logo alí, depois daquela serra, na Fazenda Morro Alto.
E, Tonico criou coragem e lhe fez uma indagação, com olhos vivos:
– O sinhô tá veno aquele burro manchado de branco?
No que o fazendeiro acenou que sim. E o menino inquiriu com súplica:
– Quando ele parí, o sinhô me dá um fiote?
Este post tem um comentário
Fantástico! Um conto sincero, bonito e que nos remete a tempos idos, onde morava a simplicidade. Parabéns irmão querido! Continue a registrar suas fantasias e nos presentear com o “ belo”