O pudim do Miguel
A infância é o tempo da experimentação. É com ela, que as nossas aventuras se iniciam e nos distanciam do temor. É quando surgem as peraltices, reprimidas com severidade pelos pais; onde as imagens permanecem com doçura em nossa memória e nos tornam saudosos e contemplativos.
Minha infância foi natural, para uma época onde ser criança era um momento indiscutível. E, indescritível. A criança-menino, da minha época, andava, comumente descalça, sem camisa, de calça curta e a única indumentária era o estilingue pendurado no pescoço – hoje é crime, inafiançável.
Naquele tempo tinha muito mais passarinho que atualmente. Haviam mais campos, matas e menos cidades. Menos cimento armado e os calçamentos das ruas eram de pedra – por entre elas a terra ainda respirava e bebia a água da chuva. Naquela época havia, em abundância, voando e enfeitando a natureza sabiá, pintassilgo, pintarroxo, melro, canário do reino, canarinho da terra, coleirinha, canário cabeça de fogo, curió, juriti, assanhaço, passo-preto, bem-te-vi, fogo-pagou, joão-gaveteiro, guaxo, pardal, beija-flor, andorinha, tiziu, tico-tico, siriri, saracura, garrinchinha, cotovia, patativa, rolinha, pomba-de-bando, inhambu-chitão, chororó, codorna e perdiz, dentre muitos passarinhos.
Matei passarinho sim, não nego. Peraltice da época. Da época de menino. Mas, no tempo passado, os homens não sufocavam a humanidade com gás carbono, nem fumaça e agrotóxico. Para nós, a camada de ozônio não existia, nem tampouco os males de seu buraco, ou melhor, ainda não era preocupação para os homens da ciência. Sei lá, acho que não! Será que já se preocupavam? Deixa prá lá!
É na infância, que surgem as primeiras imagens, os heróis, as figuras, que permanecem na nossa imaginação, durante toda a vida. Como disse, com sabedoria de “menino”, Chico Buarque numa música de Sivuca: “agora eu era herói e o meu cavalo só falava inglês…”. A frase estava sempre em nossa boca, na hora de brincar, dita no presente, porém no particípio passado, e oriundo de alguma imagem do seriado na matinê do cinema ou de algum personagem de gibi. Aliás, a magia do cinema era sem truques e os heróis dos quadrinhos eram desenhados à mão.
Os quitutes da minha época de criança, também eram mais naturais. Menos sofisticados. A gente podia comer doce, pois ser menino gordinho não se constituía em mal para a saúde. Eu comi muito doce, porém fui um magricela. O fogão e o forno eram aquecidos à lenha. Até o café era torrado em casa, no fogão à lenha, numa torradeira redonda, um cilindro onde se enchia de café cru, por uma abertura. A esfera era levada à chama e havia uma haste, que terminava em uma manivela, que pelas mãos de nossas mães fazia o cilindro girar. A cozinha enchia-se de um cheiro forte de café torrado. Na sequência, era moído em um moedor manual.
Lembro-me, como se hoje fosse, de Seu Miguel, que na sua carroça de latão percorria a cidade vendendo, por atacado, quitandas e doces, para os donos de bares. A sua carroça, avançada para aquele tempo, era um baú, como a carroceria dos caminhões atuais, que transportam móveis. O seu Miguel deve ter sido precursor destes caminhões. No meu próximo artigo, sobre “Os inventores de Araxá”, vou nomeá-lo “inventor do baú de transporte”. Porém, até lá, vamos continuar descrevendo a carroça do seu Miguel. Assim, retomando-se o fio da meada, o seu baú tinha portinholas, ao lado – quando abertas, desnudavam prateleiras repletas de doces, quitandas e pudins. Foi desta maneira, que conheci o seu Miguel, defronte ao bar do seu Raul, que depois passou para o Vetinho da Belcholina, ali na Rua Mariano de Ávila, quase esquina da Capitão Izidro, em Araxá. Na confluência das ruas, meu pai mantinha um comércio de tecidos, calçados, chapéus, perfumarias, brinquedos, ferragens, miudezas e mais um monte de artigos, denominado Casa Cardoso. Entre a nossa loja e o bar do Seu Raul, na Mariano de Ávila, havia a Tinturaria Dutra, do Geraldo. Mais acima, após o bar, o Mercadinho do Seu Miranda.
O seu Miguel parava a sua interessante carroça, de tração animal – uma égua tranquila e já repassada, na lida de puxar o baú e o patrão em cima. Após o estacionamento do veículo, o seu Miguel descia e ia ter-se com o seu Raul, já velho e de óculos. Após colocar os assuntos do dia de véspera, em dia, recebia os pedidos do dono do bar. Como acontecia, diuturnamente, ele destrancava a portinhola da carroça, que se abria de cima para baixo, transformando-se em uma prateleira. Em seguida, puxava de dentro uma forma, redonda, de latão, contendo um delicioso pudim de queijo, que os italianos sofisticaram e transformaram-no em “Caçarola Italiana”. O seu Miguel tomava a forma com a mão esquerda e deitava o pudim na mão direita, desenformando-o. Depois, debruçava a forma de cabeça para baixo na prateleira – que era também a portinhola do baú – e colocava o pudim nas costas da forma; com movimentos rápidos o fatiava com um estilete grande, parecido com uma faca, sem cabo. Já em fatias, o bom Miguel levava a iguaria para dentro do bar e a colocava num prato branco, quando o Seu Raul, imediatamente, expunha-o numa vitrine, abaixo do balcão. Logo após, ainda trazia pé de moleque, doce de leite, queijada, cocada, ameixa de queijo, rosca, pão de queijo, dentre outros. E, eu ficava espiando, com a boca aguada.
Para mim, o seu Miguel sempre foi fantástico. As carroças, daquela época, transportavam cargas de madeiras, tijolos, telhas, entulhos e toda tranqueira da cidade, como acontece, ainda hoje. Porém, a do seu Miguel era recheada de quitutes e doces. Na minha concepção, aquilo era o máximo! Uma carroça adocicada! E, além do mais, a maestria do seu Miguel ao fatiar um pudim era, realmente, coisa de mestre.
Há algum tempo, conversando com o Betão, do bar, que sabe de tudo do passado desta cidade, pude conhecer a origem de seu Miguel. Ele chamava-se Miguel da Silva e sempre foi confeiteiro. Morava no Lava-pés. De seu Raul, desconheço a origem. Já, o Vetinho foi casado com a Pipinha e genro do seu Clodoveu Caixeta, carcereiro, que, por sinal, era casado com dona Mariínha, filha do saudoso seu Joaquim da Silva, construtor de carro de boi. O Geraldo, que era gago e zombava de minha gagueira infantil, pertenceu à família Dutra. O seu Miranda chamava-se João. Todos eles já devem estar em outra morada, mas cada qual deixou a sua história. Meu pai, partiu cedo, “fora do combinado”, segundo Rolando Boldrin, aos setenta e quatro anos, em 1986.
Nos nossos dias, o pudim que mais se aproximava do sabor do pudim do Miguel era o do saudoso Licinho, lá do antigo “Amarelinho”. Quem fazia era a dona Marlene, sua esposa! Eu sempre lhe encomendava uma forma da caçarola do Miguel.
Esta história aconteceu, de verdade, nos meados da década de cinquenta, do século passado, que o tempo engoliu, com o passar dos anos.