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Caso – A Nota Máxima

Caso Livro contos e casos ao acaso

No tempo em que estudava no Colégio Dom Bosco, de Araxá, no princípio da década de sessenta, século derradeiro, havia um professor de nome Padre Martinho. Era um imigrante, se não me engano da Iugoslávia, que havia vivido os horrores da “Segunda Guerra Mundial” e dela herdado alguns traumas. Seus conceitos e costumes eram avessos aos nossos.

Na igreja, os jovens se afastavam de seu confessionário, devido à sua rigidez e as reprimendas, em voz alta. Dentre as suas penitências recomendava a oração diária de um terço, durante 30 dias.

No colégio, Padre Martinho lecionava a matéria “História Geral”. Naquela época, para aferir o conhecimento do aluno sobre a matéria ensinada, os professores ministravam provas escritas, uma vez ao mês, e orais, ao final de cada semana. Já Padre Martinho, além da prova escrita, inquiria os alunos em toda aula, antes de ensinar a cotidiana disciplina.

No início da aula, detrás de sua cátedra, ao prestar olhos, por cima dos óculos, em seus alunos e a um só tempo no Diário de Classe, passava o dedo indicador de A a Z, para a escolha de um nome desafortunado, num dizer pausado e carregado de empáfia e suspense:

– Agora, vamos a ver alguém; alguém que nos fale da lição da última aula. Vamos a ver o senhor…. o senhor… o senhor… o senhor… o senhor…

A sala gelava, muitos abaixavam a cabeça e se escondiam atrás do colega da frente, evitando o olhar ferino do mestre.

Depois, o padre sorria, matreiro, tomava a caneta e a espalmava por entre as mãos, fazendo-a girar em duplo sentido, no aguardo do pobre, infeliz e indefeso aluno, escolhido a dedo, como um algoz a espreita do golpe final.

Após convocar e ter o pobre coitado à sua frente, o professor lhe proferia a sentença:

– Por enquanto, o senhor tem a nota máxima. Fale-me sobre Napoleão Bonaparte.

O discípulo começava a explanar e o professor, feliz, em cada tropeço, diminuía a nota, até chegar em uma mediana, para baixo. Se o aluno soubesse toda a lição da aula passada, o professor começava a lhe interrogar sobre a outra, pregressa, até o discípulo começar a se estrepar. Ele costumava dizer que nunca havia dado uma nota máxima.

Padre Martinho afeito ao rigor do ensino em sua terra natal, quando da prova escrita, apesar de ser de “História Geral”, cobrava dos alunos até os seus mínimos erros gramaticais. As provas escritas se alternavam, às vezes, com dez questões ou uma dissertação longa. Era por demais difícil um aluno tirar a nota mediana, quiçá, uma máxima. Todos nós estudantes padecíamos com as benditas aulas e provas de “História Geral”.

No corpo docente do colégio tinha um cargo, no segmento disciplinar, denominado, “Padre Conselheiro”, ocupado pelo Padre Justino, que fazia jus ao nome – era muito rígido e aplicava castigos aos alunos insubordinados. Uma destas punições obrigava ao insurreto a decorar uma página de qualquer assunto em um livro curricular – decorado e cobrado após o término das aulas, no mesmo dia. Muita das vezes o aluno permanecia no pórtico do colégio até duas ou três horas após o término das aulas. Decorando.

Muitos jovens, do corpo discente do educandário, praticavam um ato de deslize, quando não sabiam descrever qualquer tema nas provas escritas. Tratava-se de copiar do colega ao lado ou do próprio livro o texto sobre o tema a que se propunha a prova. Chamava-se colar.

De certa feita, um certo colega de aula, chamado Wellington Luís Fontes, apostou com outro, que tiraria dez na próxima prova do Padre Martinho. Era loucura! Impossível!

Na primeira prova escrita, após a aposta, cujo formato era uma dissertação, Wellington colou do livro o assunto, inclusive com as suas diversas pontuações, nos mínimos detalhes. Depois, em casa, decorou o texto, com todas as suas minúcias.

Na aula consequente à prova, ao entregar os exames corrigidos aos alunos, sem se levantar da mesa, o Padre Martinho, deixou, propositadamente, o Wellington por último.

Como em um acontecimento teatral, o mestre se levantou da sua cadeira por detrás da mesa, e em tom solene, disse aos seus pupilos:

– Agora, quero fazer uma ressalva. Gostaria de entregar esta prova a um brilhante aluno, que tirou a nota máxima. Trata-se do senhor Wellington Luís Fontes. Por favor, senhor Wellington, se levante!

O meu colega, em postura altiva, se levantou e aguardou o professor:

– Pois é, senhor Wellington, continuou o padre, quem vai tirar a nota máxima é a sua prova, no entanto, você vai tirar um zero, pois ao colar o texto do livro, inocentemente, ao invés de escrever com suas próprias palavras, copiou até as suas vírgulas.

Em tom sagaz, matreiro que nem raposa vermelha, Wellington respondeu ao professor:

– Desculpe-me contradizer o estimado mestre, mas eu sei este texto de cor e salteado, pois tive a felicidade de decorá-lo em um castigo do Padre Justino.

Como o Padre Conselheiro aplicava estas punições todo o santo dia, era impossível o Padre Martinho aferir a verdade com ele, de vez que escolhia os textos dos castigos aleatoriamente em diversos livros e já penitenciara, àquela altura, centenas de alunos.

O velho padre, experiente e sagaz, esboçou um sorriso manhoso, voltou à mesa e se sentou. Pegou a caneta e a esfregou entre as palmas das mãos e lhe respondeu, com a costumeira arrogância, com o seu sotaque estrangeirado, sem retirar o semblante de vitória do rosto:

– Pois não, meu caro aluno! Você é realmente uma pessoa de muita sorte, o castigo virou uma prenda. Todavia, longe de querer lhe colocar em situação de escárnio, por gentileza, chegue aqui em frente, e declame, com detalhes, este texto, com todos os seus verbos, adjetivos, pronomes e pontuações, etecetera, etecetera. Só assim, você receberá esta prova, com a nota máxima.

Wellington, não se conteve de satisfação; descerrou no rosto um sorriso ainda mais zombeteiro que o do mestre; dirigiu-se à frente, perante todos nós e representou:

– Armand Jean du Plessis, vírgula, Cardeal de Richelieu, vírgula, Duque de Richelieu e de Fronsac, abre parentese, Paris, vírgula,  nove de setembro de mil quinhentos e oitenta e cinco,  travessão,  Paris, vírgula,  quatro de dezembro de mil seiscentos e quarenta e dois, fecha parentese,  foi um político francês, vírgula, que foi primeiro, hífen, ministro de Luís Treze de mil seiscentos e vinte e oito a mil seiscentos e quarenta e dois, ponto e vírgula, foi arquiteto do absolutismo na França e da liderança francesa na Europa, ponto, …

E, daí em diante, Wellington explanou todos os pormenores do texto, com a plena pontuação, nos ínfimos detalhes, nos deixando boquiabertos.

Após o surpreendente e pomposo recital, conquanto da sua performance teatral,  Wellington se calou e, ainda, com aquele sorriso chocarreiro, olhou para o professor e aguardou, em silêncio. Na sala podia se ouvir até mesmo o farfalhar das asas das moscas.

Padre Martinho se transfigurou. Decepcionado, com a sua infausta investida, aquela ironia e escárnio se transformou em insatisfação e desinteresse. Deste modo, sem se rebaixar, estendeu o papel ao Wellington e apenas lhe disse:

– Aqui está a sua prova…

Feliz, como pinto sobre a quirela, Wellington olhou o papel, conferiu a sua nota, e, surpreso, argumentou com o mestre:

– Uai, Padre Martinho, o senhor me deu apenas um nove. Eu mereço dez, a nota máxima!

Padre Martinho retomou o antigo sorriso astuto, como se tivesse vencido a contenda no último segundo e lhe respondeu com desdém, ao abrir o livro para retomar a aula:

– Meu filho, dez é para quem ensina. A nota máxima para o aprendiz é nove. Vá se sentar, por favor.

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