Caso – Pés de Moleque
Nas décadas de sessenta e princípio de setenta havia em Belo Horizonte uma república de estudantes, que teve a sua formação nos primórdios de cinquenta. Com todos os louros a que lhe dedicaram, era a famosa República do Edifício Nossa Senhora do Carmo, na Rua Rio de Janeiro, 909, apartamento 504.
Entre suas paredes se aconchegaram várias gerações de estudantes araxaenses, dentre os quais, citarei alguns, num resgate histórico: os irmãos Augusto e Osvaldo Abreu, Djalma Portela, Pedro Ananias de Aguiar, Hélio Carneiro, Paulo Maneira, Marcílio e seu irmão Tonicão Teixeira, Rinaldo Cunha, Fernando Carrera, Fernandão e João Jacques Santos, além de vários outros de outras freguesias.
Meu propósito é me deter nas décadas de sessenta e setenta, quando tive o privilégio de morar com amigos inesquecíveis, graças a Deus, a maioria vivos e gozando de saúde: Luís Rosalvo Santos, também das primeiras turmas, Sidinho Santos, Teodorico e Ivaizinho Coelho, Rominho Leitão, Humberto Ladeira, Marcelo Debrot e seu irmão Saulo, já encantado, e alguns de outras paragens. No após, ainda moraram Ricardo Afonso, Abel e Sérgio Neupmann, dentre outros.
Nossas vizinhas de frente, da área de serviço, filhas do Gonçalo Ferreira de Aguiar, eram a Gema, Luzia, Aparecidinha, Bernadete, grandes amigas – além do, então namorado da Bernadete, Cézar Mendonça, presente mais amiúde, à noite, até às 22 horas.
A República foi também ponto de encontro da grande maioria de araxaenses, residentes em BH e cidades circunvizinhas, além de visitantes de Araxá. Para citar alguns, vale lembrar o Danilinho Cunha, Dirceu Ferreira, Armandinho de Angelis, Perhaps, Toninho Drummond, Luís Di Mambro, Vander de Castro Alves, Evaristo Braga, Bené Cardoso, Macêdo, os irmãos “Zés” Walter e Amílcar Machado, Fábio Santos, Alfredo do Chiquito, Aloísio Chaer, Oliverinho e muito mais, de minha época.
Foi na República que ouvi, pelo rádio, por falta de grana, o “Ganso” faturar o “Galo” no Mineirão. Tempos bons aqueles! E como me rejubilei!
Só para registro, fomos despedidos do apartamento no Edifício Senhora do Carmo e a nossa República com os mesmos móveis da década de cinquenta, ainda nos acompanhou no Edifício JK e posteriormente na Rua Turquesa, 1150, no Prado, onde ela se desfez. Desta época, vale lembrar de muitos companheiros: Osvaldinho Zema, Juninho Lemos, Junão Valle, Ítalo Ross, o Dedé, Bráulio Carvalho, Alexandre Montandon, Paulo Terêncio e vários outros. Depois de mim, Luizinho Cardoso, Canarinho Marrom, Durvalzinho Bernardes, Nilo Vale e por aí vai…
A boa gente que citei mais acima, a última safra do Edifício Senhora do Carmo, até hoje gozando de boa saúde, todos viviam quebrados, à exceção dos Rominho e Luís Rosalvo, bancários e com salários para ninguém botar defeito. Os demais recebiam parcas mesadas no final do mês, que cobriam os custos da república, colégio e sobrava uma graninha, que era toda destinada aos bares Saloon, do Toninho de Ibiá e o Palladium. A partir do dia 10, ninguém mais tinha dinheiro, inclusive os guimbas do Rominho Leitão, que dava três tragadas e apagava o cigarro, eram disputados à unha por mim e o Sidinho.
Visitar a família, em Araxá, só de três em três meses, porém o Rominho fugia à regra, em razão da sobra de recursos financeiros. Fora o marajá da república. Todo final de semana Rominho arrumava a mala e ia curtir a Terra do Sol e de Dona Beija. Na segunda-feira, à noite, reuníamos no meu quarto e do Luís Rosalvo, para o turista nos contar os últimos acontecimentos de nosso torrão natal. Histórias que podiam preencher páginas de livros.
Numa de minhas idas a Araxá, inclusive com uma camisa nova que o Téo me emprestou e que foi motivo da Lena, então sua namorada, comentar em casa: “o Téo ficou, mas a sua camisa veio”, minha mãe fez uma receita culinária de família que eu adorava. Era um pé-de-moleque moído que a gente comia com leite gelado, o que, até hoje me dá água na boca. É uma receita sofisticada que leva erva-doce, cravo e vários outros condimentos, originada da família Perfeito e que a minha avó Quinha ensinou para a minha mãe.
No domingo à noite, qual não foi a minha surpresa, quando mamãe entregou-me uma lata cheia de pés-de-moleque, para a gente se deliciar em Belo Horizonte. Entrei no ônibus da Gontijo mais feliz que juriti em arrozal.
Na segunda-feira, após o almoço da Comadre, nossa governanta na República, busquei no quarto a lata de pé-de-moleque e ofertei a todos. O Rominho comeu e repetiu umas cinco vezes, elogiando seguidamente a guloseima. Quando eu falei que era melhor com leite gelado, o Rominho ainda experimentou o doce mais umas quatro vezes, acompanhado com o complemento. Como a lata ficou na cristaleira da sala, os pés-de-moleque anoiteceram e não amanheceram. Acabaram-se numa tarde e numa noite.
O tempo se passou, a gente continuou levando a vida em BH e o Rominho indo e vindo a Araxá, todo final de semana.
Depois de uns quatro meses retornei à minha cidade e, durante o convívio com meus familiares, minha mãe disse-me, satisfeita e feliz:
– Meu filho estou muito feliz, pois agora posso agradá-lo, mesmo à distancia. Você deve estar se deliciando, sempre, com os pés de moleques de sua mãe, não é?
Sem compreender a razão de suas palavras lhe respondi:
– Não estou lhe entendendo mamãe, desde a última vez que aqui estive, nunca mais saboreei os seus pés de moleque!
No que minha mãe respondeu-me, ao pé da letra:
– Quem não está entendendo sou eu; toda semana o Rominho Leitão vem aqui em casa com uma encomenda sua de mais uma lata de pés de moleque?
Fedazunha!.., falei apenas comigo.